30 de dezembro de 2007

O Quinto Elemento

A dona de casa despertou quatro e trinta da madrugada. E antes mesmo das cinco já se encontrava no Posto de Saúde. Tão logo chegou, ocupou o lugar na fila e foi tratando de fazer amizades - precisava, considerando que o atendimento só começaria às sete e trinta da manhã. Tempo demais para permanecer ali, à toa, sem desabafar os sofrimentos! Já se dava por feliz de ser a quarta na ordem de chegada. Havia tempo de sobra, para contar causos. Entre uma conversa e outra, sempre atenta aos pormenores do cotidiano, ela observou, à distância de onde se encontrava: um sapato; nada demais, não fosse o razoável estado de conservação do calçado: praticamente novo! Estranhou o fato. Quem haveria de ter perdido um sapato daquele? – perguntava-se - quando viu, do outro lado da rua, o outro par, igualmente jogado na calçada. Não se contendo, falou a companheira da fila:
- Aqueles sapatos não lhe parecem novos? – já pensando na utilidade dos mesmos. Muita gente sonhava com um presente daquele.
- É verdade. Parecem perfeitos! – respondeu a outra.
Animada, ela logo tratou de recolhê-los, de modo a deixá-los juntos um do outro. Talvez aparecesse algum interessado... Longe, como estavam – concluiu – decerto, acabariam no lixo. Assim, colocou-os juntos, atrás de si, de forma que furtivamente alguém os pudesse levar...
Passados minutos, a fila parecia não ter mais fim. E, diga-se de passagem, o quinto elemento da fila era o par de sapatos. Assumira o posto quando um cidadão, o sexto na ordem de chegada, havia se postado atrás dos sapatos, sem questionar por que eles estavam ali. O dono havia saído para uma necessidade qualquer - pensara - e havia deixado os sapatos reservando o lugar. Era possível! Obviamente que o sujeito voltaria logo! Mas não voltou. E a fila foi aumentando...
A dona de casa (senhora da idéia) e mais poucas pessoas da fila que sabiam do fato, riam de se matar, olhando lá o solitário par de sapatos, guardando a vez na fila. O velhinho, o sexto da fila, tinha-se firme, sem se incomodar. Curiosos vinham de longe ver. Um disse-que-disse dos infernos! Pessoas tomavam conhecimento da prosopopéia e se manifestavam, indignados:
- Que absurdo! Não demora muito e trarão cabides, calcinhas, cachorros, para reservar lugar na fila. Isto não está certo. Alguém precisa tomar providência...
O auge da indignação acontecia no exato instante em que abriam o posto de saúde. Momento o qual passava por ali uma senhora, já indo embora, desolada, levando nos braços o filho bastante enfermo. Como dissera, chegara tarde, o ônibus tinha quebrado, e uma vez que seu filho não podia ser atendido naquele dia, o levaria a uma emergência. A dona de casa ali, que havia colocado os sapatos ali, fazendo-se de surda, mas atenta às lamúrias da outra, maquinava as idéias. Rapidamente puxou a mãe da criança pelo braço, argumentando firme:
- Pensei que não viesse mais, vizinha... Guardei a vaga do seu filho – disse, fazendo a mãe assumir na fila o lugar dos sapatos. No estado de enferma em que se via a criança, quem haveria de questionar? Embora nada entendesse, a mãe obedeceu; valendo-se da sorte e da caridade da outra. Além de consultar o filho, ainda de sobra, levou o par de sapatos para o marido. A dona de casa, o espírito exultante, logo se sentiu aliviada do sofrimento físico, voltando pra sua casa de alma lavada. Ajudara a si mesma tanto quanto aliviara o sofrimento do seu semelhante...


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