15 de dezembro de 2007

A morta viva


O doutor suava a cântaros quando a Brasília chegou abarrotada de gente, os pneus traseiros arriados, o peito do motorista esmagado contra o volante. E uma vez estacionada, começou a sair povo de dentro que não acabava mais. Dava assim a imaginar há quantas dificuldades o condutor fizera as curvas da estrada... À medida que o pessoal do banco dianteiro descia, a geringonça ia empinando, dando a entender que a carga mais pesada estava ainda por desembarcar: uma morta-viva deitada no colo de quatro acompanhantes que, somados ao motorista, a esposa e o filho de oito anos, chegava a sete: os vivos. Os olhos do menino esbugalhados de medo – pudera, não é sempre que se dá carona a uma morta-viva; ainda mais que diziam que a tal piscara os olhos; outro jurava ter visto ela se mexer; também disseram que a falecida havia puxado o véu preto que lhe tampava o rosto - sinais e atitudes que o doutor havia de contestar, razão por que estavam ali, numa Clínica de interior: o povo da Brasília e mais os da redondeza, entre os quais, o diácono que fora chamado para o encomendo do corpo, e que se negara a concretizá-lo, diante das circunstâncias - exigiu antes o Atestado Médico; não encomendaria nenhuma morta-viva! Assim, ligaram ao médico dizendo que estavam levando uma falecida para o parecer final, mas quando o doutor ia dizer não, já haviam desligado o telefone. E foram saindo do banco de trás os defunteiros, carregando o corpo embrulhado em ededrons. O calor exalado dava a impressão de vida ainda, embora a morta tivesse horas de falecida, diziam. O doutor ali, pensativo, o coração batendo na garganta. - Dizer que está viva, é fácil; provar o contrário, é que são elas! Ainda mais com toda àquela inexperiência de recém-formado. – Quem viu o quê? - A Maria, que não veio, disse que ela soprou a vela. - Mais o quê? – A Juana disse ter presenciado ela fazer beicinho; mas também não veio dar testemunho. - Além do mais doutor, ela continua quente, arrematou o mais otimista – É possível, é possível..., disse o doutor, o olhar de través no amontoado de ededrons ao lado. Coisa de gente à toa! – pensou, em silêncio. E puxou o espelhinho de uma prateleira e o posicionou defronte as narinas da morta; e nada... Está morta! Mas não digo, nem com a faca no pescoço. - Vamos observar. Esvaziem a sala. Deixamo-la aqui um pouco; vê se esfria – disse o doutor, precavido. Ainda mais que viu o cabo da peixeira estufando a camisa do tal ainda não viúvo, sujeito mal-encarado, sabe-se lá com qual intenção do desfecho do caso - queria permanecer viúvo ou o quê? Deu tempo ao tempo. Pediu ajuda dos deuses da morte; deveria existir algum para momentos como aquele... Mas não aportou nenhum ali na sua sala; estava definitivamente sozinho. Pediu ajuda a Esculápio, o deus romano da medicina, ou seja, Asclépio, filho de Apolo, para os gregos. - Não! Esculápio não... Esculápio ia querer ressuscitar a morta. E depois vão falar aos quatro cantos que sou milagreiro. Preciso dar cabo nesse buchicho – pensava! Assim, apelou a Hipócrates. Hipócrates poderia desaguar ali os humores orgânicos da vida; ou então a dita cuja estava morta mesmo e, pronto! Era só assinar o Atestado de Óbito e mandar toda aquela gentalha embora: o povo todo da Brasília e os abelhudos dos arredores; pareciam urubus, esperando a sentença de morte; ele, o doutor, seria o Urubu-Rei, comeria os olhos da morta e deixaria o resto pros demais. Olhos?... Lembrou-se do éter. Olhou para a mesinha ao lado e lá estava o frasco. Encharcou o algodão e pingou meia dúzia de gotas; em cada olho. Nada... - Está morta. Mas não digo de jeito nenhum! Puxou com força os pelos do sovaco da morta; beliscou os pneuzinhos do lado, disfarçado na malícia; e por fim, espetou uma agulha na ponta do dedo minguinho. Nada... Decidiu-se mesmo quando um familiar adentrou o recinto, na ânsia de uma resposta definitiva. O doutor lá, em volta da morta-viva. - Quem viu mais o quê? Essas pessoas que viram são bons da cabeça? – O que doutor? – Há!... Deixa isso pra lá. – O custo do Atestado é de Trezentos Reais. – O que doutor? Tudo isso? – Sim. Cem pra mim. Cem para o meu guru Esculápio. E tem os custos do mestre Hipócrates. Trezentos Reais e estamos conversados. Podem levar a morta. - Tem certeza, doutor? Está morta mesmo? - Morta, morta, não sei... Mas burra dos olhos se encolherem do solvente de esmalte e não sair correndo daqui, só mesmo coisa de gente morta. Pode enterrar...

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