1 de janeiro de 2008

Cão desmiolado dos infernos


Tinha-se aos ouvidos que não se tratava de latido comum; acuado lastimoso – parecia mais de angústia, de opressão dolorosa, que de ferocidade mesmo. E um tanto assombroso; razão porque ninguém era capaz de ir lá socorrer. Valente, que saísse da enrascada sozinho. Cão desmiolado dos infernos, sô! Sabia-se há muito que com aqueles cafundós não se brincava. Dizia o povo, ser lugar assombrado; acontecia-se lá muitas aparições procedentes de causas inexplicáveis; coisas de outros mundos - afirmavam, davam fé mesmo, os caçadores desajuizados, gente arrependida de caçada. Mas o danado do cão não tinha mesmo juízo - toda a noite corria lá atrás de bicho; sabe-se mais atrás de que? Quase sempre voltava ferido, o couro rasgado, manco, senão com a cara cheia de espinhos – vingança de ouriço-caixeiro qualquer –, quando tremia na febre semana ou mais. Mas não emendava. Sarava e punha o focinho a rumo; dar o troco, por certo. Farejava e sumia nos confins da floresta. Lá pelas tantas da noite, ouvia-se o seu latido às brenhas do mato, longe, como tivesse na pega de algum bicho. Vez e outras, parecendo ser ele mesmo a caça. Como àquele dia em que choramingava. Só de ouvi-lo, arrepiavam-se cabelos e pelos do corpo; contudo, ninguém tinha coragem de ir lá, acudir. Noite de breu. Nenhum alumiar discreto de lua no céu. Só ao longe, estrelas cintilantes e a lamúria do cão. Valente lá, vivendo seus momentos de aperto, de pura loucura e insensatez. Pensava-se que das aventuras já passadas, ele não voltaria; mas qual o quê, amanhecia no terreiro, no estremecimento do cansaço, lambendo as próprias feridas, a língua de fora e os olhos inda esbugalhados – como tivesse lutado com sobrenaturais. Era admirado por todos. Caia-lhe bem o nome: Valente. E a cor-pardacenta, da qual se valia na hora da caça ou da fuga - se é que o desajuizado permitisse alguém imaginar que pudesse ele fugir de alguma coisa: fosse onça ou coisa extraordinária?... Enfrentava tudo. Nada o intimidava; ao contrário, parecia gostar da peleja, enquanto os outros cães ficavam ao redor da casa, ressonando a preguiça. Não era o seu caso...
Cedo, aquecia-se ao sol da manhã, modo se recuperar da umidade da floresta onde labutava até o amanhecer; talvez, por conta do instinto caçador, fosse ele parente próximo de algum lobo, filho talvez, ao que demonstrava o endiabrado cão. Ninguém sabia ao certo. Farejava como nenhum outro. Corria como um raio. Desaparecia, feito dia na escuridão. Se o amarravam, ele ruía a corda. Gostava mesmo era de caçar. Ou de cruzar; tinha filhos à revelia pela redondeza. Mas naquele dia, o latido-choramingado, parecia ser coisa das piores. Longe de ser bicho pequeno. Havia lá nos cafundós, pelo barulho do entrevero, confusão das grandes. Todos da morada vieram ao terreiro, dar ao coitado, consolo de pensamento. – Meu Deus, o que será desta vez? Força Valente!... - gritavam. A dona da casa, quem comumente lhe curava as feridas com salmoura e erva medicinal, ali, segurando na reza - fosse espírito-mal, quem sabe ajudava. Quem sabe... Nem tanto, se fosse onça das malvadas. Embora Valente já tivesse enfrentado algumas e saíra da luta com dignidade, diga-se, sem pedaços das orelhas, o lombo ferido, modo que as enfrentava a unha e dente; não punha galho dentro. Naquela noite, podia haver duas ou mais; vá saber...
O povo lá no terreiro, acudindo na fé. Mas, para cão desmiolado, metido na selva àquelas horas da noite, nem mesmo oração. O latido agoniado; choramingado. Até ameaçaram ir lá, interceder, três ou quatro dali, de lanterna, espingarda, foice, facão; mas naquela mata ninguém se metia; muita mais em circunstâncias tais; assim, recuaram... O cão já devia ter aprendido, tanto que apanhava por lá, mas não..., o intrometido, intrigante, Valente, voltava sempre pra lá; como tivesse contas a acertar. Sabe-se lá com qual bicho, onça, jaguatirica, javalis, ou sobrenatural qualquer? Naquela noite Valente latia, rosnava lastimoso, leonino, lento, longe, enquanto se pode ouvi-lo; naquela noite. Depois, nunca mais...

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