15 de dezembro de 2007

O Pica-Pau Carijó


O seu coração acelerou forte, quando viu o pica-pau carijó precipitar-se do galho da goiabeira, segundos depois de a bolota de barro sair de sua atiradeira e o atingir no peito. Correu a pegá-lo. O pássaro ainda abria e fechava o bico, na esperança de um último fôlego de vida. Então, ele já não sabia se era isso mesmo que queria: o pássaro sem vida, desmantelado, as asas flácidas, ainda que sentisse o calor do coitado em suas mãos. Seus olhos navegavam desiludidos no brilho daquelas penas que, segundos antes, lhe pareciam bem mais intensos; reluziam ao sol daquela manhã. Foi como se de repente a luz dos seus próprios olhos se ofuscasse. Ou mesmo estivesse ficando cego, por castigo da crueldade que acabara de cometer. Viu uma gota verter dos olhos do pássaro, momento em que, dos seus, precipitavam rios de lágrimas. Aquele já não era o mesmo pássaro: faltava-lhe o ânimo, a beleza, a agitação de quando o pássaro identificara a larva no cerne do galho e, sestroso, havia começado a picar o galho podre da goiabeira, segundos antes de ser atingido mortalmente.

Então, ele se perguntava: por qual razão trazia, a tiracolo, a atiradeira e um embornal de bolotas? Pegou o pássaro e o estendeu sobre o chão. Abriu-lhe as asas, as penas, o máximo que podia... Viu muito mais que os matizes das cores; fascinava-lhe o desenho das asas, o arranjo das penas, a simetria do conjunto, a cauda no complemento do corpo, as patinhas, os detalhes... Naquele momento viu o pássaro batendo asas, voando, e levando no bico à larva. Viu-o dando de comer aos filhotes; eram dois ou três no ninho. Antes, pôde ver o momento em que ele fizera o buraco no tronco de uma árvore seca e lá ajustara os raminhos no oco. Era um casal. Deveras, não tinha o direito de aniquilar aquela vida; não tinha...

Estava ali, já há algum tempo, olhando as asas abertas do pássaro; havia voado com ele pra muito longe; sobrevoaram campinas, montanhas, lagos, os mais distantes. Foram à arribação; foram e voltaram. Haviam atravessado oceanos e rios. Estiveram bem próximos às nuvens; viram Deus. Deus também tinha asas. Voaram juntos. Eram muitos. Passaram pelas cordilheiras, atravessaram bosques, saciaram a sede em cacimbas, dormiram ao abrigo das florestas, comeram frutas silvestres. Seus olhos ainda vertiam lágrimas, quando resolveu cavar um buraco na terra. Podia se enfiar nele, se enterrar; estava tão morto quanto o pássaro. Mas enterrou apenas o pássaro. Antes, se deu ao cuidado de se presentear com uma das penas. E adornou o próprio chapéu, como lembrança daquele fatídico dia. Em seguida, da forquilha da atiradeira, fez uma cruz, amarrou-a com o próprio elástico do desmanche do estilingue, e a fincou sobre o túmulo do pássaro. Deus estava presente naquela hora. Testemunhou. O dia parecia noite quando ele se levantou e foi embora, levando consigo os matizes das penas, nos seus olhos, nas veredas do seu coração, onde há um pica-pau carijó, com uma larva no bico... Que vive nele, para o sempre.

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