30 de dezembro de 2007

O Quinto Elemento

A dona de casa despertou quatro e trinta da madrugada. E antes mesmo das cinco já se encontrava no Posto de Saúde. Tão logo chegou, ocupou o lugar na fila e foi tratando de fazer amizades - precisava, considerando que o atendimento só começaria às sete e trinta da manhã. Tempo demais para permanecer ali, à toa, sem desabafar os sofrimentos! Já se dava por feliz de ser a quarta na ordem de chegada. Havia tempo de sobra, para contar causos. Entre uma conversa e outra, sempre atenta aos pormenores do cotidiano, ela observou, à distância de onde se encontrava: um sapato; nada demais, não fosse o razoável estado de conservação do calçado: praticamente novo! Estranhou o fato. Quem haveria de ter perdido um sapato daquele? – perguntava-se - quando viu, do outro lado da rua, o outro par, igualmente jogado na calçada. Não se contendo, falou a companheira da fila:
- Aqueles sapatos não lhe parecem novos? – já pensando na utilidade dos mesmos. Muita gente sonhava com um presente daquele.
- É verdade. Parecem perfeitos! – respondeu a outra.
Animada, ela logo tratou de recolhê-los, de modo a deixá-los juntos um do outro. Talvez aparecesse algum interessado... Longe, como estavam – concluiu – decerto, acabariam no lixo. Assim, colocou-os juntos, atrás de si, de forma que furtivamente alguém os pudesse levar...
Passados minutos, a fila parecia não ter mais fim. E, diga-se de passagem, o quinto elemento da fila era o par de sapatos. Assumira o posto quando um cidadão, o sexto na ordem de chegada, havia se postado atrás dos sapatos, sem questionar por que eles estavam ali. O dono havia saído para uma necessidade qualquer - pensara - e havia deixado os sapatos reservando o lugar. Era possível! Obviamente que o sujeito voltaria logo! Mas não voltou. E a fila foi aumentando...
A dona de casa (senhora da idéia) e mais poucas pessoas da fila que sabiam do fato, riam de se matar, olhando lá o solitário par de sapatos, guardando a vez na fila. O velhinho, o sexto da fila, tinha-se firme, sem se incomodar. Curiosos vinham de longe ver. Um disse-que-disse dos infernos! Pessoas tomavam conhecimento da prosopopéia e se manifestavam, indignados:
- Que absurdo! Não demora muito e trarão cabides, calcinhas, cachorros, para reservar lugar na fila. Isto não está certo. Alguém precisa tomar providência...
O auge da indignação acontecia no exato instante em que abriam o posto de saúde. Momento o qual passava por ali uma senhora, já indo embora, desolada, levando nos braços o filho bastante enfermo. Como dissera, chegara tarde, o ônibus tinha quebrado, e uma vez que seu filho não podia ser atendido naquele dia, o levaria a uma emergência. A dona de casa ali, que havia colocado os sapatos ali, fazendo-se de surda, mas atenta às lamúrias da outra, maquinava as idéias. Rapidamente puxou a mãe da criança pelo braço, argumentando firme:
- Pensei que não viesse mais, vizinha... Guardei a vaga do seu filho – disse, fazendo a mãe assumir na fila o lugar dos sapatos. No estado de enferma em que se via a criança, quem haveria de questionar? Embora nada entendesse, a mãe obedeceu; valendo-se da sorte e da caridade da outra. Além de consultar o filho, ainda de sobra, levou o par de sapatos para o marido. A dona de casa, o espírito exultante, logo se sentiu aliviada do sofrimento físico, voltando pra sua casa de alma lavada. Ajudara a si mesma tanto quanto aliviara o sofrimento do seu semelhante...


Um olhar para dentro de nós mesmo!

Há quem afirme que o corpo é o nosso maior patrimônio. Eu faço uma ressalva: não só é o maior, mas o único. Compartilhamos mais nossa vida com o nosso corpo do que com outro bem qualquer. Tudo o mais que consideramos nosso fica por aí, quando partimos. Levamos conosco apenas uma muda de roupa, sapatos (há quem não os têm), no dia da despedida da fase carnal; a alma para um lado, o corpo para o outro - restos mortais que a terra transformará em pó. Mas enquanto vivemos o corpo exige uma série de cuidados. A ambição e a soberbia não levam a nada; não compramos saúde. O importante é viver bem, com saúde, harmonia e paz. Para isso, precisamos entender um pouco de nós mesmos; mais do que habitualmente já sabemos. Neste particular, somos preguiçosos. Um tigre sabe mais de seus riscos e possibilidades do que um ser humano. Até os mais entendidos de saúde, aqueles que cuidam da saúde alheia vacilam; poucos sãos os que estimulam a qualidade de vida como melhor forma de driblar a doença. Que tal olharmos um pouco para dentro de nós mesmos?...
George Vithoulkas, homeopata, dá uma boa idéia da hierarquia que há no nosso organismo; vejamos a ordem de importância: em primeiro lugar, o cérebro; depois o sistema glandular (hipófise), o coração, os pulmões, o fígado, os rins, ossos e por fim, a pele. Cito aqui apenas os representantes maiores de cada sistema que compõe o nosso corpo. Agora, vejamos a localização de cada um desses órgãos. Quanto mais importante, mais protegidos eles são. O cérebro e a hipófise: ficam dentro da calota craniana. O coração e os pulmões: sob a proteção dos arcos costais; o fígado e os rins, também estão bem alojados no abdome. Escondidos, dessa maneira, acabamos os ignorando ou não lhes dando a atenção devida. Não os vendo, não aprendemos a escutá-los, a senti-los, a admirá-los, o que significa não mantermos com eles uma relação de harmonia, respeito e compreensão. Até parece que esses órgãos não existem. Damos mais atenção àquilo que vemos no espelho? O nosso perfil, as feições, a estética; não que esta não seja importante, mas temos devotado a esta parte de nós mais atenção que a outros segmentos de nosso corpo, exatamente as frações que mais nos enobrece. Considerando a hierarquia citada, estamos nos vendo ao avesso; pelo avesso da importância que devemos nos ver e nos cuidar; cremos que é função do médico nos manter saudável; assim, não precisamos nos preocupar! Vã ilusão. Mas quando adoecemos, corremos em busca de socorro, muitas das vezes, tarde demais. O corpo é sim, um patrimônio nosso. Logo, cabe-nos, no dia-a-dia, dedicar a este mais atenção, começando por entendê-lo.
É comum pessoas se conformarem com sintomas tipo: dores articulares, abatimento, distúrbios orgânicos e creditar isto à velhice. Envelhecimento não é adoecimento. Michael Roizen, no livro, Idade Verdadeira, recomenda que atrasemos o nosso relógio biológico, o que quer dizer: cuidar da saúde e não creditar à idade cronológica os nossos problemas de momento. Devemos parecer mais remoçados e saudáveis que a idade aparenta. Não interessa quanto anos de vida temos? Interessa sim, o estado fisiológico, biológico, o que quer dizer: estarmos assintomáticos, ativos, produtivos, felizes... Mesmo assintomático, devemos visitar o médico anualmente para exames complementares, cuidando da prevenção ou diagnóstico precoce de uma possível doença cardiovascular, por exemplo. Mas nunca ficar só na dependência das ações medicamentosas; o objetivo é não depender do medicamento. O nosso organismo não combina com química; combina sim, com alimentação saudável, divertimento, atividade física, gozo, hobby. É importante saber que além dos nossos órgãos (e respectivos sistemas) existe nos recôncavos do nosso corpo, um imenso laboratório de substâncias naturais que nos mantém vivos; substância estas que ficam desorientadas, sem a função devida, quando fazemos uso de medicamentos ou ficam estagnadas, quando ficamos parados. É nesse momento que adoecemos ou ficamos mais propícios ao adoecimento.

Um olhar para o meio ambiente!

Dias atrás, numa das minhas caminhadas, presenciei duas situações totalmente opostas. Numa delas, vi alguém deixar cair um saco plástico na calçada; deduzi que fosse a embalagem de um alimento qualquer tal o modo como o indivíduo, após o seu desleixo, levava a mão à boca enquanto seguia o seu caminho; indiferente ao que fizera. Logo atrás ia uma senhora de idade, cabelos brancos, que teve dificuldades para se abaixar e recolher a tal embalagem; quanto ela se aproximava do saco plástico, o vento o empurrava para mais longe. Achei que iria desistir. Mas, não... Foi insistente. Depois de tanto ser driblada, conseguiu apanhar o lixo e depositá-lo numa lixeira que havia a alguns metros à sua frente, no mesmo trajeto do “sujismundo” acima citado. Dois seres humanos; mas, com visões diferentes! Por certo, ambos vivendo na mesma cidade, tendo acesso às mesmas informações, por que hoje só não está bem informado quem não se interessa - os indiferentes às questões da saúde e do meio ambiente. Haveremos sempre (penso eu) de fazer a parte deles e a nossa. Não tiveram berço e nem escola. Portanto, nunca terão consciência de quanto à insensatez é prejudicial a sua própria saúde e a dos outros. As crianças de hoje já estão mais ativas. A escola ensina, a criança assimila, e exige dos pais a mesma atitude. Mas, nem sempre são ouvidas ou suas ações se anulam na irracionalidade do adulto que nunca se interessou pelas coisas da natureza, nunca plantou uma árvore, nunca valorizou a água que bebe, nunca parou para pensar... Nunca olhou o meio ambiente com os olhos do coração.
De um lado, os ambientalistas, os racionais, batendo de frente com os que propõem desenvolvimento a qualquer custo: os menos racionais. Os lá de cima do morro, desmatando e plantando seus barracos; não entendo por que eles vêem estorvo numa única árvore, que poderia lhes dar sombras, maior dignidade e lhes fazer parecerem menos pobres, até? Os cá de baixo, construindo prédios; um ao lado do outro, sem nenhum compromisso com as exigências municipais de preservar parte do terreno para áreas de lazer; a totalidade da área compromissada com o metro quadrado da construção, não importando se falta espaço lá fora. E falta, cada vez mais. Enquanto a criança é pequena, ela limita-se aos nichos dos apartamentos, das creches, dos pátios das escolas e de um ou outro playground dos edifícios onde moram. Depois de crescida, não tem para onde ir. Não cabem mais dentro de casa, nem nas ruas, onde o risco é cada vez maior. Assim, vamos nós todos, da raça humana, num descendo incontido.
Não podemos falar de saúde, sem lembrar escola, educação, ou envolver as duas coisas: “Educação para a Saúde”. O que significa um comprometimento maior do ser humano com a prevenção das doenças, ou seja, o indivíduo cuidar do meio ambiente, cuidar de si mesmo. Diferente de “Política de Saúde”, que depende das ações governamentais, “Educação para a Saúde”, não tem nada a ver com o nível de escolaridade do indivíduo; muitos analfabetos respeitam o meio ambiente; muitos doutores, nem estão aí... Sensato, é o compromisso do indivíduo com ele mesmo, com o semelhante e com o mundo. Lembrar que, em se tratando de saúde, não há mais fronteiras; a doença, não tem bandeira.
Àquela senhora, que com certa dificuldade pegou o lixo para colocá-lo no seu devido lugar, sabia que àquele plástico, que o vento teimava em levar para longe dali, ficaria por lá, até a quarta ou quinta geração dela. Mas antes disso, talvez matasse de engasgo alguma tartaruga marinha, já que estávamos à beira-mar. As tartarugas confundem plástico com água viva - um dos seus alimentos. Aquela senhora fazia a sua parte, ainda que suas articulações lhe reclamassem do esforço - pareceu-me! Mostrava também que sua preocupação não se restringia ao lixo na lixeira; mais que isso, dava o exemplo de que a saúde está ao alcance de todos, está nas nossas atitudes perante a vida, por isso, ela caminhava. Hipócrates há 400 a C., dizia que saúde é um “estado de equilíbrio entre as influências ambientais, modos de vida e os vários componentes da natureza humana”. Há citação dos escritos antigos: “Corpus hippocraticum” entre esse, o livro “Ares, Águas e Lugares”. Se alguém viu falar desse livro e sabe onde encontrá-lo, eu pagaria uns bons trocados para tê-lo em minhas mãos. Já naquele tempo, havia preocupação com o meio ambiente. Portanto, hoje, quando falamos em meio ambiente, não estamos falando de nenhuma novidade; apenas que, deixamos de lado este assunto algumas décadas atrás. Vem daí, a origem da maioria das doenças que apagavam muito cedo a chama de nossas vidas.

27 de dezembro de 2007

Salvo-conduto a Nelson Rodrigues

Dagoberto soergueu-se de um pulo só tentando levantar logo as calças e encobrir o falo ainda em riste, a moça totalmente descomposta na areia enquanto o PM mantinha a calcinha dela arriada, a prova cabal do crime in loco, e o outro agente com a arma em suas costas – Teje preso seu moço. Vá se vestindo. E que a moça fique como está! Bulhufas... Lucilene meteu os pés no intruso que lhe segurava a peça íntima e se levantou ainda que o tal tocasse às mãos, de propósito, em suas coxas. – Tira as patas daí, seu bestalhão! - disse, enfurecida. O namorado logo se impôs também e retirou do bolso uma carteirinha fulera, com a insígnia da Polícia Militar. E dizia-se sobrinho do General. O agente podia ter dito. – Inventa outra, malandro. Fosse você sobrinho de General, estariam num hotel cinco estrelas; não aqui!
Eram os anos da ditadura e da boa-vida do absolutismo. Mas em vez disso, o agente retrocedeu, enquanto o subalterno tratava de limpar a mão, já que Dagoberto acabara de ejacular lá nos recôncavos da moça, o sêmen da ledice – Meleca! – disse o PM em pensamento, já indo embora, sem os ambicionados trocados no bolso; era costume dos “homens da insígnia” pegar os amantes por ali, modo subtrair-lhes algum “trocado” em paga de não irem presos. Tudo bem, mais tarde os gêmeos-da-farda ainda flagrariam algum outro sarro pelas praias do Flamengo. Era praxe após intensa refrega no Cinema de frente pro aterro, completar-se o serviço ao som do ruído das marés que vinham da baía da Guanabara. E aí é que surgiam, sabe-se lá de onde, o Cosme-e-Damião no lusco-fusco das luzes que alumiavam de longe a beira-mar. Comumente via-se gente correndo ali, de calças na mão. No outro dia, lia-se na coluna do Nelson Rodrigues – Casal apanhado fazendo coisa-feia na praia do Flamengo. Mas quem não fazia?
A praia era o ponto de encontro dos namorados, estudantes, cujos trocados mal davam pra comer no Calabouço, dirá pra comer no Motel? Nelson Rodrigues sabia muito bem tirar proveito das coisas malfeitas, dos costumeiros arrochos (em pé) em plena lotação e dos eflúvios domingueiros, dia de Maracanã. Gostava de zoar com a casta Sociedade Carioca e espinafrar os desmandos do entretenimento futebolístico, escrevendo com a propriedade que lhe era nata; não se podia deixar de ler, nunca, sua coluna do Jornal do Esporte. Satírico dos maiores, vez em sempre se encrencava. Seu personagem, Gravatinha, era um cartola exigente, que tinha lá as suas manias – alegrar-se e sofrer por conseqüência do Fluminense Futebol Clube.
Imagino hoje Nelson Rodrigues caçando matéria de Jornal, pelas entranhas do Rio de Janeiro. Notícias que lhe rendesse um bom tema. Render-se-ia logo ao primeiro saite onde os netos de Dagoberto e Lucilene tinham-se nus na posição côncavo-convexo, em luxuriosa animação. E seu bisneto se deliciando em frente à tela. Pois é, seu digníssimo escritor pornô, os tempos mudaram: namorados fazendo coisa-feia na praia, deixou de ser ibope; o povo deliberou-se e liberou-se, de vez. Você apenas antecipou-se ao tempo. Dagoberto e Lucilene também. De tal feito que Gravatinha, seu impoluto personagem, ficaria de cabelos-em-pé; tanto pelos altos e baixos do seu clube das Laranjeiras quanto pelos “fiqueis” de agora; afora às “Paradas Gays”, que também aqui em baixo chamam de Diversidade. Contente-se, seu menestrel da vida mundana. Sua alma está salva! Quanto à nossa, não sei...

26 de dezembro de 2007

Minha amiga, a lagartixa.


Em todos os momentos que me ponho a escrever à noite, lá na sala adequada aos meus delírios filosóficos, poéticos, ambiciosos, não há uma só vez que eu não tenha como companhia uma jocosa lagartixa. Basta que eu acenda a luz do recinto e o calor desta atraia os insetos que se batem no vidro transparente da janela por fora, que logo ela vem banquetear-se! Através do vidro vejo o deslizar-se de sua barriga esbranquiçada, arrastando-se em patas agarradiças na busca dos incautos insetos – ávidos, pelo calor da luz; assim imagino! De tal forma que me distraio da escrita e fico atento à sua sabedoria – uma paralisante quietude na tocaia da presa; não precisa ir-se longe: os insetos vêem ao seu alcance, como que magnetizados por sua gosmenta língua. A lagartixa come um, come dois, três..., come até saciar-se. Depois se recolhe como num descaso ao meu insistente olhar; não se sabe aonde, apenas se vai, esconde, desaparece...
É quando então, me sinto só! Mas, entendo que precisa ir-se... Nem haveria razão de permanecer, a não ser pela minha distração e indubitável devaneio de pensamento. Ela é singela, magricela, apesar de comilona! E não me parece educada, uma vez que lhe dou a luz que atrai o seu banquete e ela nem sequer me agradece; ou agradece, quando balança sistematicamente a cabeça... Não tenho cá, tanta certeza disso! Também não importa; importa-me que ela exista. Dias atrás, ainda me fez rir: caindo da desembestada carreira na pega de um mosquito – Tibum..., lá no chão! Não demorou e já voltou altaneira, imperturbável, a procura de um novo sustento. Por certo, a queda faz parte da sua rotina – na busca da sobrevivência! De toda maneira, sou eu quem deve agradecê-la, viu sua lagartixa! A sua fome voraz poupa-me o incômodo dos mosquitos, durante o meu descanso.
Não bastasse a ajuda, sou-lhe grato pela existência. Além de se fazer colírio para os meus olhos, tenho a satisfação da sua companhia. É isso; devemos muito de nossa grandeza às pequenas criaturas; tê-las juntas de nós e compreendê-las nos faz sentir vivos, pois quê, elas são a extensão da nossa existência. Falo por mim, lagartixa; por menor que sejas, a mim sempre parecerá grande. E por mais que me tenha por grande, não lhe alcançarei na sabedoria; ainda assim, sigo sobrevivendo: enquanto escrevo, resisto à piração, aos logros da vida, na saudade do que já fui, na satisfação do que sou e na esperança de que a vida não me envelheça, embirrento.
Lagartixa desculpe-me, por essa conversa a toa! É que necessito dialogar com alguém, mesmo sabendo que as respostas às perguntas que me faço, nem você mesmo tem. De qualquer maneira, sigo tentando aprender a sua lição: agarrando-me às paredes da vida; que me são lisas, muito lisas; razão, por que, também caio delas – Tibum!... Lá no chão!
Permanecendo, cá, a dúvida: lagartixa ou camaleão? Não responda, no ato, você pode se enganar...

25 de dezembro de 2007

Bis...Bis...

Ligaram o velho calhambeque e foram às compras na cidade. Zé Pedro pretendia, mas Belarmindo foi contra levar as mulheres. Para efeito de anteciparem a volta antes da chuva da tarde. Mulher, dizia Belarmindo, tem mania de olhar vitrine, podia-lhes atrasar o desprendimento. E lá se foram; precisando empurrar o calhambeque morro acima, o veículo às voltas com problemas mecânicos. Previsto voltarem cedo, acabaram chegando à cidade já no adiantar da hora do almoço, razão pela qual resolveram almoçar pó lá mesmo. Com as pensões já fechadas, obrigaram-se a entrar num restaurante de requinte; aventura por aventura, àquela era mais uma.

Desconfiados, sentaram-se à mesa, cuidando de não se parecerem assim tão matutos, de olho no ambiente, mais propriamente, no que as pessoas tinham nos pratos, exato momento que ouviram a palavra Bis – era o freguês da mesa ao lado, pedindo ao garçom que repetisse a receita. Zé Pedro e Belarmindo arredaram de lado o cardápio e se fiaram na pedida dos vizinhos. – Bis também. Não sabiam mesmo o que significava todos àqueles nomes esquisitos do cardápio... Enquanto a comida não vinha tomaram duas cervejas modo aplacar o pó da garganta. Não muito tempo depois, veio a feijoada. Uma daria, não fosse o entendimento do garçom: que trouxe logo duas; justificando assim o pedido. Iguaria em abundância, mas já que a comida estava ali, não fariam desfeitas; matuto sim, mas educados... E sem mais delongas, peitaram a empreitada. Os vizinhos do lado, pagando pra ver.

Raspadas as tigelas e pratos, os dois saíram às compras. As encomendas já no calhambeque, nuvens carregadas no céu, resolveram dar uma volta pela cidade, na intenção de deixarem a passar a primeira chuva da tarde. Na porta do cinema, um aglomerado de pessoas, e o cartaz anunciava: Show da dupla caipira: Tonico e Tinoco! Pois que seja! Já que não podiam seguir viagem, optaram por assistir o espetáculo; enquanto a chuva dava uma trégua. Ainda que empanturrados e flatulentos, do pé de porco, do paio, da pimenta, da lingüiça, da cerveja, adquiriram às entradas e se acomodaram bem no centro do anfiteatro, para melhor aproveito. A barriga lá, num estofamento dos infernos. Educados, evitaram peidar ali; tampouco arrotavam. Na primeira música: Tristeza do Jeca, o povo gritava: - Bis!... Bis!... Eles, querendo esquecer a iguaria! O peido ali, louco pra se expressar; mas temiam pelo resultado. Borrassem nas calças, e seriam espancados até a morte, por aquela gentalha desvairada. Na segunda música, quando o povo mais uma vez pediu - Bis!...Bis!..., já não agüentavam mais. Antes do terceiro Bis, Bis saíram de fininho, deixando um ardido lá no nariz dos desgraçados.

Era noite alta, quando chegaram ao sítio. Cada um pra sua casa, se arriscando ainda apanharem das mulheres. Belarmindo, inda que remoesse a indigestão, deitou-se e dormiu. A mulher falando nos seus ouvidos. Entre roncos e pesadelos, sonhou... Sonhou que havia morrido – de indigestão, naturalmente –, e estava na porta do céu. Tentava entrar. São Pedro conferiu a lista e não encontrando seu nome, recomendou que voltasse; estava enganado: não tinha morrido! Belarmindo retrucou. - Não volto. Estou morto. Além do quê, não tinha como voltar! São Pedro, relutante. -Vivo, no céu, ninguém entra. Depois de muita insistência do porteiro, Berlamindo resolveu voltar. Bastava – como lhe dissera o porteiro -, transformar-se numa aranha! Aranha, pelo sabido, poderia tecer um fio, pela bunda, e descer lá de cima - como as aranhas fazem, normalmente. E feito aranha, Belarmindo despediu-se de São Pedro, mergulhando em direção à terra. Que se explique: seguro pelo fio da teia que ia soltando. Numa certa altura o fio acabou e Belarminhdo gritou – E agora, São Pedro? No que São Pedro, respondia – Faz mais força Belarmindo. Força... Belarmindo atendeu e desceu mais um trecho, sentindo que o fio ainda era curto. Voltou a gritar - E agora, São Pedro? São Pedro, respondeu: - Faz mais força Belarmindo. Bis!...Bis!... Assim, tomado de toda energia que a feijoada lhe conferia, Belarmindo chegou à terra – no sonho, naturalmente – quando foi acordado pela mulher que o espancava: - Porco, imundo... Cagou na cama e na minha camisola, seu desgraçado!

15 de dezembro de 2007

A morta viva


O doutor suava a cântaros quando a Brasília chegou abarrotada de gente, os pneus traseiros arriados, o peito do motorista esmagado contra o volante. E uma vez estacionada, começou a sair povo de dentro que não acabava mais. Dava assim a imaginar há quantas dificuldades o condutor fizera as curvas da estrada... À medida que o pessoal do banco dianteiro descia, a geringonça ia empinando, dando a entender que a carga mais pesada estava ainda por desembarcar: uma morta-viva deitada no colo de quatro acompanhantes que, somados ao motorista, a esposa e o filho de oito anos, chegava a sete: os vivos. Os olhos do menino esbugalhados de medo – pudera, não é sempre que se dá carona a uma morta-viva; ainda mais que diziam que a tal piscara os olhos; outro jurava ter visto ela se mexer; também disseram que a falecida havia puxado o véu preto que lhe tampava o rosto - sinais e atitudes que o doutor havia de contestar, razão por que estavam ali, numa Clínica de interior: o povo da Brasília e mais os da redondeza, entre os quais, o diácono que fora chamado para o encomendo do corpo, e que se negara a concretizá-lo, diante das circunstâncias - exigiu antes o Atestado Médico; não encomendaria nenhuma morta-viva! Assim, ligaram ao médico dizendo que estavam levando uma falecida para o parecer final, mas quando o doutor ia dizer não, já haviam desligado o telefone. E foram saindo do banco de trás os defunteiros, carregando o corpo embrulhado em ededrons. O calor exalado dava a impressão de vida ainda, embora a morta tivesse horas de falecida, diziam. O doutor ali, pensativo, o coração batendo na garganta. - Dizer que está viva, é fácil; provar o contrário, é que são elas! Ainda mais com toda àquela inexperiência de recém-formado. – Quem viu o quê? - A Maria, que não veio, disse que ela soprou a vela. - Mais o quê? – A Juana disse ter presenciado ela fazer beicinho; mas também não veio dar testemunho. - Além do mais doutor, ela continua quente, arrematou o mais otimista – É possível, é possível..., disse o doutor, o olhar de través no amontoado de ededrons ao lado. Coisa de gente à toa! – pensou, em silêncio. E puxou o espelhinho de uma prateleira e o posicionou defronte as narinas da morta; e nada... Está morta! Mas não digo, nem com a faca no pescoço. - Vamos observar. Esvaziem a sala. Deixamo-la aqui um pouco; vê se esfria – disse o doutor, precavido. Ainda mais que viu o cabo da peixeira estufando a camisa do tal ainda não viúvo, sujeito mal-encarado, sabe-se lá com qual intenção do desfecho do caso - queria permanecer viúvo ou o quê? Deu tempo ao tempo. Pediu ajuda dos deuses da morte; deveria existir algum para momentos como aquele... Mas não aportou nenhum ali na sua sala; estava definitivamente sozinho. Pediu ajuda a Esculápio, o deus romano da medicina, ou seja, Asclépio, filho de Apolo, para os gregos. - Não! Esculápio não... Esculápio ia querer ressuscitar a morta. E depois vão falar aos quatro cantos que sou milagreiro. Preciso dar cabo nesse buchicho – pensava! Assim, apelou a Hipócrates. Hipócrates poderia desaguar ali os humores orgânicos da vida; ou então a dita cuja estava morta mesmo e, pronto! Era só assinar o Atestado de Óbito e mandar toda aquela gentalha embora: o povo todo da Brasília e os abelhudos dos arredores; pareciam urubus, esperando a sentença de morte; ele, o doutor, seria o Urubu-Rei, comeria os olhos da morta e deixaria o resto pros demais. Olhos?... Lembrou-se do éter. Olhou para a mesinha ao lado e lá estava o frasco. Encharcou o algodão e pingou meia dúzia de gotas; em cada olho. Nada... - Está morta. Mas não digo de jeito nenhum! Puxou com força os pelos do sovaco da morta; beliscou os pneuzinhos do lado, disfarçado na malícia; e por fim, espetou uma agulha na ponta do dedo minguinho. Nada... Decidiu-se mesmo quando um familiar adentrou o recinto, na ânsia de uma resposta definitiva. O doutor lá, em volta da morta-viva. - Quem viu mais o quê? Essas pessoas que viram são bons da cabeça? – O que doutor? – Há!... Deixa isso pra lá. – O custo do Atestado é de Trezentos Reais. – O que doutor? Tudo isso? – Sim. Cem pra mim. Cem para o meu guru Esculápio. E tem os custos do mestre Hipócrates. Trezentos Reais e estamos conversados. Podem levar a morta. - Tem certeza, doutor? Está morta mesmo? - Morta, morta, não sei... Mas burra dos olhos se encolherem do solvente de esmalte e não sair correndo daqui, só mesmo coisa de gente morta. Pode enterrar...

O peregrino e a gaivota




Enquanto se aproximava, indagava-se: por que estaria aquela gaivota pousada ali, sozinha, como se estivesse chocando os ovos, no relevo de uma duna, de frente para a praia, e não voando como as demais? Aproximou-se vagarosamente, ainda na esperança que a ave levantasse vôo. Quem sabe só estivesse descansando? O dia era chuvoso e frio. E, por acaso, ele passava por ali, numa de suas peregrinações habituais. Curioso era a gaivota não reagir à sua aproximação; não demonstrar nenhum medo. Se muito a ave fez, foi erguer a cabeça pro seu lado, como também o saudasse. Talvez ele tenha dito: olá! O que se passa, dona gaivota? Você está doente? Estava tão perto dela que podia tocá-la. Mas como a gaivota não respondeu, apenas sentiu, ocorreu-se entre os dois um imenso silêncio, que só não foi maior que o murmúrio das ondas do mar, para onde a gaivota antes olhava. O mar que fora inteiramente dela, um dia... Talvez a ave estivesse escolhido aquele início de primavera, aquele momento, aquele lugar, para morrer... Talvez estivesse ferida... Vá saber... Antes que tomasse a iniciativa de levá-la consigo, pra cuidá-la, ele pensava: estaria afastando-a do seu habitat natural e talvez ela morresse num mundo estúpido e insensível, como o seu... Seria inteiramente injusto! Que direito tinha, se ele, peregrino, estava ali, exatamente, procurando encontrar-se, longe das mesmices de um mundo cruel e desumano... Mesmo que fosse triste a cena, ele levantou-se e seguiu o seu caminho, na certeza de que havia feito o melhor, deixando apenas as marcas na areia, como prova, de que por instante estivera ali, com ela, a sua misteriosa gaivota.

O Pica-Pau Carijó


O seu coração acelerou forte, quando viu o pica-pau carijó precipitar-se do galho da goiabeira, segundos depois de a bolota de barro sair de sua atiradeira e o atingir no peito. Correu a pegá-lo. O pássaro ainda abria e fechava o bico, na esperança de um último fôlego de vida. Então, ele já não sabia se era isso mesmo que queria: o pássaro sem vida, desmantelado, as asas flácidas, ainda que sentisse o calor do coitado em suas mãos. Seus olhos navegavam desiludidos no brilho daquelas penas que, segundos antes, lhe pareciam bem mais intensos; reluziam ao sol daquela manhã. Foi como se de repente a luz dos seus próprios olhos se ofuscasse. Ou mesmo estivesse ficando cego, por castigo da crueldade que acabara de cometer. Viu uma gota verter dos olhos do pássaro, momento em que, dos seus, precipitavam rios de lágrimas. Aquele já não era o mesmo pássaro: faltava-lhe o ânimo, a beleza, a agitação de quando o pássaro identificara a larva no cerne do galho e, sestroso, havia começado a picar o galho podre da goiabeira, segundos antes de ser atingido mortalmente.

Então, ele se perguntava: por qual razão trazia, a tiracolo, a atiradeira e um embornal de bolotas? Pegou o pássaro e o estendeu sobre o chão. Abriu-lhe as asas, as penas, o máximo que podia... Viu muito mais que os matizes das cores; fascinava-lhe o desenho das asas, o arranjo das penas, a simetria do conjunto, a cauda no complemento do corpo, as patinhas, os detalhes... Naquele momento viu o pássaro batendo asas, voando, e levando no bico à larva. Viu-o dando de comer aos filhotes; eram dois ou três no ninho. Antes, pôde ver o momento em que ele fizera o buraco no tronco de uma árvore seca e lá ajustara os raminhos no oco. Era um casal. Deveras, não tinha o direito de aniquilar aquela vida; não tinha...

Estava ali, já há algum tempo, olhando as asas abertas do pássaro; havia voado com ele pra muito longe; sobrevoaram campinas, montanhas, lagos, os mais distantes. Foram à arribação; foram e voltaram. Haviam atravessado oceanos e rios. Estiveram bem próximos às nuvens; viram Deus. Deus também tinha asas. Voaram juntos. Eram muitos. Passaram pelas cordilheiras, atravessaram bosques, saciaram a sede em cacimbas, dormiram ao abrigo das florestas, comeram frutas silvestres. Seus olhos ainda vertiam lágrimas, quando resolveu cavar um buraco na terra. Podia se enfiar nele, se enterrar; estava tão morto quanto o pássaro. Mas enterrou apenas o pássaro. Antes, se deu ao cuidado de se presentear com uma das penas. E adornou o próprio chapéu, como lembrança daquele fatídico dia. Em seguida, da forquilha da atiradeira, fez uma cruz, amarrou-a com o próprio elástico do desmanche do estilingue, e a fincou sobre o túmulo do pássaro. Deus estava presente naquela hora. Testemunhou. O dia parecia noite quando ele se levantou e foi embora, levando consigo os matizes das penas, nos seus olhos, nas veredas do seu coração, onde há um pica-pau carijó, com uma larva no bico... Que vive nele, para o sempre.