Vinte e dois de julho de 2006, praia do Pântano do Sul, Floripa, Santa Catarina. Clima de verão num inverno com cara de outono. Sete e quarenta horas da manhã. Três peregrinos começando ali uma caminhada, momento que corriam e brincavam na praia três vira-latas. O mais arrojado deles avançando sobre os urubus e as gaivotas que aventuravam o desjejum trazido do mar pelas ondas noturnas. De princípio, me pareceu ser àquele um cão de outras bandas, não afeito à preguiça - dos cães de agora. Vez em quando ainda o vira-lata se metia no mar, por conta de refrescar-se do calor. Enquanto caminhávamos no sentido à praia da Solidão, o cão nos acompanhava, como se fossemos o dono dele, e não ele tivesse nos escolhido, sabe-se lá por qual razão e destino? Tínhamos uma longa caminhada pela frente. Três peregrinos, cada um com seu cajado, pertences, pochetes e mochilas. De início, achamos que o acompanhamento se tratava de boas-vindas costumeiras e que logo o cão voltaria às investidas contra os urubus e as gaivotas; afinal, era sábado, dia de vadiar. Fizemos o trajeto Pântano do Sul, Solidão e chegamos à praia do Saquinho, o cão indo junto, hora à frente, hora atrás. Várias vezes o danado já havia banhado nas águas do mar o seu longo pelo branco-dourado. Não era cão dos grandes, mas sabido que só uma peste! Principalmente quando passava em terreno alheio e os outros cães rosnavam e corriam atrás; momento que ele vinha pro nosso lado, em busca de guarida. Sem muito perceber, já estávamos lhe dando proteção com os nossos cajados. Tempo depois desaparecemos no mato, numa trilha composta de trechos bons e ruins - morro acima, morro abaixo. O cão se comportando condolente conosco nas subidas mais íngremes. Outras vezes, um ou outro de nós lhe dando acolhida, quando ele se assustava com visão qualquer? Ninguém sabia direito o caminho? Assim em certos lugares mais adivinhávamos a direção da trilha. E se muito o cão nos abandonava era por conta de assustar um ou outro pássaro que catava o sustento por ali; e já retornava à trilha, posicionando-se quase sempre entre os seus três novos comparsas; às vezes, alguns metros à frente. Em determinado momento ergui rapidamente o cajado, armei-me, vez que ele, o cão, vinha em desembalada carreira. Coisa boa não era - imaginei. Mas fui em frente. Nadinha de nada! Fosse o que fosse, o cão era assim: andava, olhava, parava; sempre cuidadoso. Quando alguém se adiantava na trilha e os outros ficavam pra trás, ele se punha indeciso; a quem acompanhar? Como que cuidando de todos. Ou mais que isso, preferindo a proteção de todos. Nos dez quilômetros de trilha agreste comportou-se mais prudente, como se não fosse acostumado a andar em capoeiras; também não éramos. Estávamos ali por conta de conhecer o trajeto, alguns momentos de interação com a natureza; decerto, necessidade de sublimação, no desejo de driblar as mesmices da vida. O cão, por acaso, se metera em nosso caminho; à revelia. Como não lhe sabia o nome, passei a chamá-lo de Japi. Talvez, por que precisávamos, vez em quando, trocar alguns olhares, algumas palavras, alguns senões; mormente, diante das encruzilhadas do caminho. Confesso que em alguns instantes, confiei mais no seu faro do que no meu instinto. Por volta do meio-dia chegamos à praia dos Naufragados. Japi correu para refrescar-se no mar, ao passo que procurávamos um botequim para degustar uma água gelada, já na hora do almoço. Refrescado do calor, o cão pôs-se deitado, ressonando, sob a nossa mesa de almoço. Comemos e seguimos em frente. Por conselho dos outros peregrinos, não ofereci comida a ele – Não perca tempo. Esse tipo, não aceita qualquer coisa! Por bem do estômago, já recusara a enchova, como que frita em óleo diesel. Vez em quando batia-nos dúvida atroz: não devíamos atirar pedras nele, o mandando de volta? Mas de volta, pra onde? Não estaria ele indo pra casa? Nós por acaso lhe fazendo companhia? Vez que antes podia ter ido para àquelas bandas, acompanhando outro grupo de peregrinos? Assim, deixamos que ele mesmo tomasse o seu rumo; as suas decisões. Até de banhar-se numa poça d’água suja e ficar barrento, já que os riachos estavam à míngua, visto a escassez da chuva. Na trilha da praia dos Naufragados à Caieira já se podia ver através da copa das árvores o sol tombando no horizonte. Japi, indo, lambendo uma réstia de água aqui, outra acolá. De repente, tive vontade de desfazer-me do peso intestinal, entenda, por conta de um feijão temperado ao dissabor do cominho. Japi ficou por ali, o olhar de soslaio, me vigiando: eu lá, atrás da moita. Não sabia se seguia os outros ou me esperava? Depois, se foi... Quando cheguei lá embaixo, no Boteco, onde os companheiros refrescavam os miolos com uma boa água mineral, Japi tinha-se deitado, descorçoado numa sombrinha, com a língua de fora.. Logo depois, ganhamos o longo asfalto da Caieira, com Japi do nosso lado, precisando mais do que nunca da nossa proteção - tão grande o número de cães querendo esfolar o seu couro. Os invejosos, isolados em seus confinamentos. Japi ali, desfilando pela Caieira, os pelos já limpos e reluzentes ao sol da tarde. – Vá saber o que deu na cabeça desse cão, que nos acompanhou até aqui? Disse alguém. No que respondi – É por essas e outras coisas que “o cão é o melhor amigo do homem!”. Mas nem tão verdadeira, foi à recíproca: trinta quilômetros caminhados, das 07h40min às 15h40min daquele dia, já esgotadas as forças das pernas, os três peregrinos adentraram o ônibus da linha que os levaria à cidade; indo embora. E o cão Japi, sabe-se lá como ficou? Onde ficou? No ponto do ônibus, decerto, sozinho, com o olhar peregrino no sumiço do ônibus na curva da Caieira. Não me lembro ter presenciado alguém de nós lhe agradecendo à companhia? Se muito fiz foi cortar ao meio um recipiente d’água e deixá-lo lá no ponto do ônibus com um pouco do líquido dentro, para que ele matasse a sede. Lá pela madrugada, do dia seguinte, acordei e fiquei pensando? Não podíamos ter recomendado a alguém que tomasse conta do pobre coitado? Podíamos sim. Mas em contrapartida, colaboraríamos para que esse alguém, com a melhor das intenções, ou precisado de boa companhia, colocasse em seu pescoço uma coleira; uma corda. E a liberdade de vir e voltar, quando mais tarde, outro dia, quem sabe, achasse outro grupo de peregrinos indo pras bandas de lá, de onde acabava de chegar? Conformei-me no pensar e voltei a dormir. Japi bem sabe o caminho... E o momento de partir, quando quiser... Tão peregrino quanto àqueles que ele havia acompanhado até ali, naquele dia. Ainda que tarde, obrigado Japi!
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3 comentários:
Sr Jairo,
gostei muito dos textos contidos no blog!
Parabéns!
Dani (Pedro)
Jairo, parabéns pela sensibilidade para com o cão. A Josi até ficou com pena dele. Gostamos muito da mensagem.Sucesso na nova empreitada.Abraços.
Juarez
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