Uma rês fujã.
Uma rês fujã, escreveria assim
João Guimarães Rosa. E tratando-se de João Guimarães Rosa, não se discute:
assina embaixo e alardeia. Vínhamos, meu irmão e eu, pelo vão de dois
barrancos, descendo o estradão. Um ruído de tropel e sacolejo de úbere de vaca indo
à frente – era a nossa, de certeza que era.
A
montaria assim, já amuada da afobação. Cercar a vaca aqui cerca acolá... mas a
bruaca tinha o corisco nos cascos –
desembestara-se da manada, com idéias próprias, descabidas. Fujã para onde? Desde que sabíamos, ali
era caminho desencontrado. E nós, inocentes, atrás, o cú doendo, montados em
dois cavalos trotões. Os mil pulos, pinotes e escorregões...
Meu
irmão mais novo vinha na rabeira. Choramingava a sorte. Lembro, em tempo, que o
anoitecer chegava nebuloso e a vaca tinha os cornos apontados lá para os
cafundós. Em rumo arriscado. Lugar mal falado, de assombração, coisas e tais...
A
rês mesma era uma abantesma da breca. Preta até o branco dos olhos, branca somente
nas patas. Cravei a espora no sovaco do trotão – Ou nóis
cerca ela, ou tamos fudidos! Falei para o cavalo, sem esperar pelo irmão.
Cada vez mais na rabeira. Todo cagado de
medo. No galope, por pouco não passei pela bruaca, que de repente desapareceu.
Escafedeu-se de toda na escuridão. Meu cavalo passarinhou, assombrado. Meu
fiofó trancou-se, que nem pensamento passava.
Veio-me
uma dor de barriga dos infernos, vontade de cagar. João Guimarães Rosa talvez
escrevesse escurrideira; mas ele era João Guimarães Rosa, brincava do
linguajar.
E
agora, a rês fujã dele, ou minha, sei
lá, virara assombração de vez; nem sinal de rês. Eu ali com cara de menino que
viu o diabo na cruz. O cavalo empacou, de olhos esbugalhados.
No
momento meu irmão chegava
– numa palidez cadavérica –
dizendo que a rês tinha voltado. Topara com ela, na curva do caminho. Mas viu
apenas as quatro patas brancas. Ia desembalada, sem fazer alvoroço de casco no
chão; num avoamento dos infernos – ele
disse, tal qual João Guimarães Rosa.
Riscamos
a espora nos trotões que foi uma só peidação e voltamos. Meu irmão gritando que
eu o esperasse. Mas confesso, não há quem espere alguém numa noite escura no
meio de um cafundó, mal assombrado, e correndo atrás de uma rês insensata, fazendo-se
de alma de outros mundos.
O
meu trotão agora voava. Ainda que a
assombração ou o que fosse aquilo, estivesse à nossa dianteira. Mais adiante,
já perto da vaquejada, alcancei-a; a rês
fujã estava lá, sentada à beira do caminho – agora vão dizer que passei dos limites, endoidei, que
vaca não senta! Disso
eu sabia, até aquele momento. E pior, a danada, esbaforida, balançou os cornos
para o meu lado. Caguei...
Tinha
a cara pálida, como estivesse vendo também alguma assombração. Ou duas!... Atrás
de mim, o irmão. Segurei o cavalo na rédea. E perguntei a ele – a vaca está mesmo sentada ou aquilo é coisa
doutro mundo? 0s olhos do irmão eram dois coités, saltando para fora da
cara.
O
tempo passando. Mas que aquela rês fujã
estava mais para uma aparição, isto estava. Foi então que surgiu na estrada,
como num encanto, montado em seu cavalo baio, o João Guimarães Rosa. Falou
alguma coisa para a tal fujã e essa se
desarranjou de sentada e saiu solevando as ancas, os cornos alevantados. Foi
passo apressado, cantando os cascos no chão. João Guimarães Rosa indo atrás,
assoviando um verso. Cheio de ideias na cabeça: essa rês é uma das minhas.
(O
lugar, nas bandas de Minas Gerais, Cordisburgo, nos idos de 1967).
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